O cidadão presidente e o necrófilo
A entrevista feita por um não jornalista a um não sujeito, o primeiro à procura de audiências e o outro felicíssimo pela atenção que lhe foi dispensada, trouxe alguns comentários para a praça pública.
A confusão do entrevistado que não sabe nada sobre história, que confunde o passado e deseja para todos o que todos em seu juízo rejeitaram, só teve rival com a convicção do não jornalista, sorridente, pensando estar a fazer um serviço enorme, talvez até público, retirando arsénico e rendas velhas do mausoléu da História e mostrando a veracidade que há mas múmias quando as empurramos para debaixo dos holofotes.
O “entrevistado” da tal conversinha chegou a dizer-se apologista do regresso de um morto – o que no mínimo é digno de um desses professores Karamba que promovem o diálogo com o além e deixam aquém as expectativas e a sinceridade alheia. – Pior: queria que o morto dirigisse o nosso destino, como uma noiva cadáver, ou similar, mas sem o génio de Tim Burton. (É a diferença entre a nojenta realidade e a graça de certa ficção).
Para ofuscar esta mini polémica, poucas horas depois, o cidadão Presidente esqueceu-se do cargo e telefonou a uma apresentadora de tv. Não está em causa nem os encantos da apresentadora, que apesar da anca larga e da desproporção das medidas é tida como bela, dessas que servem bem as horas de entretenimento, nem os gostos pessoais do cidadão, mesmo quando é presidente. Quando vivemos, como é o caso, tantas tristezas e tantos dissabores, quando ainda temos bem presente a catástrofe protagonizada pelo partido do cidadão presidente que levou o País ao fundo das ravinas – já agora, ninguém nos traz de volta as empresas falidas, as famílias desfeitas, os desesperados, os que se suicidaram ou enlouqueceram, os que perderam as suas reformas ou tiveram de emigrar, os que pagaram o famoso “regresso aos mercados” e mais de metade da Democracia pintada de laranja e despesismo que nos levou à falésia -, quando temos tanta mágoa na memória recente, qualquer apresentadora, mesmo de riso ruidoso e desaconselhável, nos traz algum conforto.
Compreende-se o cidadão e a sua vontade de vencer a solidão.
Como é habitual nos programas da tal apresentadora, havia à disposição um telefone de valor acrescentado e já se vê, ou era o pequeno fascista da conversa que queria muito ser uma entrevista, ou era o cidadão presidente a dar asas às suas fantasias, algum dos dois iria acabar por telefonar. A alternativa era o Preço Certo, mas Fernando Mendes é um senhor no meio disto tudo.
Enfim, é isto que a liberdade de expressão, a Democracia, o regime que temos nos garante: se não invadirmos a liberdade do próximo, devem ser estimuladas estas e outras. Queres ligar, flirtar, brincar, avante!
Podemos até bradar pela extrema direita e ter uma atração mórbida por um ditador morto, a necrofilia (parafilia caracterizada pela excitação sexual decorrente da visão ou do contato com um cadáver) está bem presente em alguns daqueles que nos rodeiam, no tal da “entrevista” e noutros, encontramo-los na tal conversa quase entrevista, nas redes sociais, naqueles partidos com tiques autoritários, naquelas figuras que dão o feito por não feito e o dito por não dito, desdenhando da democracia mas aleitando-se das suas pródigas tetas.
Diria eu que há que continuar a distinguir sem separar os elementos históricos e os elementos pouco ou não-históricos da realidade social. E dar espaço a todos, porque é isso que a Democracia nos oferece. E é mesmo dado, depois de conquistado – alguns é que não entendem.
Alexandre Honrado
Historiado